Com tanta coisa acontecendo na casa, a Comissão de Educação do Senado teve tempo de aprovar um projeto de lei (170/06), de autoria do senador Valdir Raupp (PMDB-RO), que criminaliza a fabricação, importação e distribuição (ou seja, tudo) de jogos que sejam considerados ofensivos "aos costumes e às tradições dos povos, aos seus cultos, credos, religiões e símbolos". Ou seja, (mais) uma decisão absolutamente inócua de um Senado que insiste em legislar sobre itens que não conhece muito bem.
Inócua porque, primeiro, já tentaram fazer isso antes: Doom, Blood, Mortal Kombat, Duke Nuken, Requiem, Postal, Counter Strike e Everquest (entre outros) já foram proibidos. Aí as lojas esperam um pouquinho e relançam os mesmos produtos (ou uma versão atualizada deles) sem problema nenhum. Citando dois exemplos, com o lançamento do Doom 3 eles relançaram o Doom original (e suas continuações) e o Counter Strike pode ser encontrado em qualquer prateleira de jogos.
Em segundo lugar, já existe uma classificação da faixa etária indicada para cada jogo, feita pela Secretaria Nacional de Justiça desde 2001. Assim, se o jogo for inadequado ou ferir algum "costume, credo, religião, símbolo" ou sei lá mais o que, é muito simples: não compre o jogo. Além de simples, é muito mais econômico. 🙂
Terceiro, mais uma vez o Senado demonstra desconhecer algumas coisas bem simples como mídias de armazenamento (pendrive, DVD, etc.) e uma tal de Internet. Proibiu a venda? No dia seguinte alguém disponibiliza o jogo em uma (ou várias) das fontes citadas acima. Aliás, já se conseguem jogos dessa forma sem nem mesmo proibir. 🙂 Ou seja, quem vai realmente se lascar com essa decisão são os revendedores.
Por fim (e esse talvez seja o entrave mais sério), quais serão os critérios para considerar o jogo "ofensivo" e quais culturas serão consideradas em "povos"? Será que eles vão considerar todos os povos (todos mesmo)? Ou estão achando que "povo" é somente o famoso padrão: homem, cristão, branco e ocidental? Porque se forem considerar todo mundo (conforme está escrito na lei), vai sobrar muito pouco jogo nas prateleiras. Pra citar somente um exemplo, o inocente Deca Sports, um jogo de atividades esportivas para o Wii, apresenta mulheres em roupas incondizentes com os preceitos de vestuário do Islã. Isso porque elas usam maiôs e colantes ou seja, roupas que "delineiam as partes do corpo". Dessa forma, esse jogo teria que ser proibido, pois "agride a tradição islâmica". E islamitas são povo como qualquer outro (apesar de algumas outras religiões discordarem disso). Tá vendo o problema de se fazer leis genéricas, senhores senadores? Não aprenderam com o projeto do Azeredo?
Agora, o meu maior incômodo nesse projeto é o fato dele me cheirar a motivação religiosa. Isso porque ele usa quatro termos relacionados ao tema: "cultos, credos, religiões e símbolos". Pra que toda essa ênfase? Isso me preocupa porque vivemos, em teoria, em um estado laico. Com isso, decisões públicas não deveriam ser baseadas em crenças religiosas de qualquer tipo, justamente para evitar discriminações e injustiças contra qualquer credo. Ou seja, por mais contraditório que possa parecer, um estado realmente laico garante maior liberdade religiosa do que um não laico. Um bom (na verdade, mau) exemplo de interferência religiosa em decisões políticas foi visto recentemente com a discussão em torno o projeto de lei de criminalização do preconceito contra homossexuais. Curiosamente, o argumento, em ambos os casos (dos homossexuais e dos jogos), são as "agressões ao credo" das pessoas. Estamos diante de um padrão emergente? Facções religiosas começararão a direcionar nossas leis? Sempre fiquei muito incomodado com o aumento exponencial de deputados e senadores ligados diretamente a cultos religiosos. Infelizmente meu medo parece está se justificando. 🙁
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